Onde estão os intelectuais?
“O país distorcido” é uma compilação de textos e entrevistas do geógrafo Milton Santos, publicadas no jornal Folha de São Paulo dos anos 80 até pouco antes da sua morte no início dos anos 2000, bem na virada do século passado. O que me chamou a atenção em quase todo texto foi sua perspicácia e profundidade ao tratar da realidade brasileira. De certa forma, ele me pareceu leve também. Não leviano. Leve. Ou simplesmente com o peso certo, nem demais para não desesperançar, nem de menos para não iludir. Milton Santos falava dos problemas que os humanos enfrentam no Brasil, aqueles problemas que afetam o corpo e as relações de cada indivíduo.
A noção de território desenvolvida por esse intelectual brasileiro me lembrou muito o animismo. Talvez esse conceito não fosse bem-vindo em uma discussão acadêmica. Mas Milton me pareceu animista, sim, porque reconheceu o valor intrínsico de cada ser que existe. Inclusive, falando de um território, das práticas e das pessoas que ali vivem formando um conjunto vivo onde o todo afeta as partes e vice-versa, o todo que é parte de um todo maior, global. Às vezes, ele se refere à globalização como globalitarização, sistema globalitário, o que parece se referir à totalitarização, militarização característica dos tempos atuais… Ele critica bastante a predominância da técnica sobre a política, e ele defende a importância da emoção. Isso seria o que nós ainda temos de valioso e que ainda pode “salvar o mundo”.
Uma ordem mundial falida e precarizadora está colapsando. Talvez não veremos a nova ordem pronta, mas estamos, com certeza, testemunhando o seu surgimento. Há, ainda, intelectuais, mas de certo até a imagem e definição de intelectual esteja mudando. Quem são os novos intelectuais? Será que ainda são necessários? Pensando bem, essa ideia de “intelectual” é muito iluminista… O tempo da razão dita iluminada, do conhecimento enciclopédico, da “civilização” europeia. Enfim, o intelectual seria uma pessoa que se dedicaria ao pensamento e à elaboração principalmente escrita de conceitos e teorias sobre outros conceitos e teorias e modelos sobre o que imagina que vê. Intuo que esse tipo de intelectual está definitivamente datado.
Agora, é tempo de resgate do corpo. Ou melhor ainda: é tempo de desistir da supremacia intelectual e permitir ao corpo nos resgatar. A cabeça precisa ser reconhecida como parte do corpo. O pensamento que não é vívido não faz sentido. Não se conhece apenas com os olhos e com os ouvidos. Não se fala apenas com a boca. Prefiro um pensamento encarnado. Prefiro pensar com o corpo todo. Prefiro conhecer com a boca e com a pele também. Isso é, também, honrar a sabedoria nativa das Américas e do continente africano que também nos anima. Pensar com o corpo dilui o eurocentrismo que nos foi transmitido em nossa formação “brasileira”. E quem vai dizer que não pode, se eu me reconheço como um ser vivo e comungo com outros seres vivos do planeta Terra? Se eu, assim como todos os outros seres, também tenho alma?
De certo era isso a que Milton Santos aludia: o reconhecimento da alma do mundo, da alma de todos os seres. Da alma, inclusive, do território.